Quem é Raphael Montes, autor de Dias Perfeitos que virou série na Globoplay

Um pedido de mãe virou fenômeno editorial. Foi assim que um “escreva uma história de amor” deu origem a um dos romances mais incômodos do suspense brasileiro recente. O resultado, Dias Perfeitos, não só mudou a carreira de Raphael Montes, como pavimentou o caminho para uma adaptação para TV e um lugar definitivo entre os autores brasileiros mais lidos do gênero.
Do Colégio de São Bento aos holofotes
Nascido no Rio de Janeiro em 22 de setembro de 1990, Raphael Montes cresceu cercado por livros e disciplina. Estudou no tradicional Colégio de São Bento e, depois, entrou em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde se formou em 2012. A literatura, porém, veio antes do diploma. Aos 18 anos, ele já assinava contos policiais em coletâneas, aparecendo em 2009 na antologia Assassinos S/A: contos policiais brasileiros, organizada por Jana Lauxen e editada por Frodo Oliveira. Ali, publicou O Professor, seu primeiro texto impresso, e abriu uma porta que nunca mais se fechou.
Em 2010, um concurso da editora Benvirá/Saraiva virou o próximo degrau. Suicidas, seu romance de estreia, ficou em segundo lugar e foi publicado em 2012. A história, marcada por cenas fortes e um olhar frio sobre a violência, chamou atenção por uma combinação rara: brutalidade gráfica e um autor muito jovem. O livro ganhou fôlego nas livrarias, nas redes e nos clubes de leitura, e colocou Montes no radar para além do nicho policial.
O passo seguinte foi maior. Em 18 de março de 2014, Dias Perfeitos chegou às prateleiras. A proposta parecia simples: um estudante de Medicina solitário se apaixona e decide construir, a qualquer custo, a vida perfeita com a mulher desejada. Nada ali é romântico. O protagonista, Téo, transita com naturalidade pelo frio da sala de anatomia — onde disseca cadáveres — e pela rotina de cuidar da mãe paraplégica. Num churrasco, ele conhece Clarice, jovem livre, com ambição de roteirista. Téo confunde desejo com destino. O que começa com uma aproximação invasiva escorrega para sequestro e cárcere. O amor prometido vira cativeiro.
A ironia da gênese do livro é conhecida entre os leitores: depois de Suicidas, a mãe do autor pediu um romance de amor. O filho atendeu — do jeito dele. O resultado é um “romance” que esmiúça obsessão, manipulação e psicopatia, com precisão clínica e ritmo de thriller. Não há declarações açucaradas, há controle. Não há juras, há cálculo. É o tipo de trama que empurra o leitor para páginas seguintes com a curiosidade de quem quer entender a lógica do monstro e, ao mesmo tempo, torce para que algo desarme a escalada de violência.
O impacto de Dias Perfeitos foi imediato. O sucesso levou Montes a fazer uma escolha rara para quem vem do Direito: largar a carreira jurídica e viver de literatura. Na prática, isso significou mergulhar em turnês, feiras, encontros com leitores e uma rotina de escrita mais intensa. Em paralelo, o livro cruzou fronteiras e abriu portas no exterior.
Os números ajudam a entender. Dias Perfeitos foi vendido para 14 países e traduzido em 22 idiomas, incluindo inglês, espanhol, italiano, francês e holandês. Veículos como The Guardian e Chicago Tribune elogiaram o romance, destacando a frieza do protagonista e a carpintaria narrativa que sustenta o suspense. Houve até quem comparasse o clima do livro ao universo moral torto dos irmãos Coen. Para um autor brasileiro jovem, no gênero policial, é uma combinação rara: circulação internacional e crítica favorável.
Com a vitrine estrangeira, vieram os direitos audiovisuais. Dias Perfeitos teve adaptação para o cinema anunciada, com Daniel Filho na direção. A história, com seu foco em controle e confinamento, pedia uma transposição precisa: como representar em tela a mente de alguém que não vê limites? O projeto audiovisual parecia inevitável — e virou realidade também na TV.
Em 2025, a história ganhou novo fôlego: a série da Globoplay levou Dias Perfeitos para o streaming, com Julia Dalavia como Clarice e Jaffar Bambirra como Téo. A escalação diz muito do tom do projeto: Dalavia, acostumada a personagens complexas, e Bambirra, com presença física e olhar que alterna doçura e ameaça, ajudam a manter a tensão que o livro cria no silêncio. A adaptação adiciona camadas visuais ao que, no papel, é monólogo interno, e reabre discussões sobre consentimento, obsessão e responsabilidade.
O efeito foi imediato também nas prateleiras. Em feiras e listas recentes, o nome de Raphael Montes voltou a aparecer no topo. Na Feira do Livro de 2025, organizada por sua casa editorial, a Companhia das Letras, ele liderou o ranking de vendas, surfando o empurrão da série e o boca a boca de novos leitores que chegaram pelo streaming e foram atrás da obra original.
Essa circulação entre página e tela não é casual. A escrita de Montes é plástica: cenas curtas, tensão crescente, ganchos claros. É literatura, mas com senso de cena. Os diálogos servem a uma coreografia de poder e controle, e o ritmo evita gordura. Essa economia de meios ajuda o texto a viajar. Funciona no Brasil e fora. Funciona no livro e no audiovisual.
Antes e depois de Dias Perfeitos, o autor construiu um catálogo que não foge da provocação. O Vilarejo explora o horror por meio de uma estrutura de fix-up — pequenas histórias entrelaçadas, em clima de fábula macabra, com estética próxima dos quadrinhos, sempre de olho no grotesco e no moralmente ambíguo. É um laboratório de atmosferas: frio, fome, superstição, culpa. A cada conto, personagens diferentes encaram uma mesma força sinistra que atravessa tempos e lugares.
Em 2016, veio Jantar Secreto, seu quarto livro. Aqui, o tema é canibalismo — tratado sem concessões e sem esconder o choque. Houve debate. Parte da crítica celebrou a ousadia e a precisão técnica do texto; outra parte resmungou do exagero e do desconforto como efeito. O consenso possível foi outro: era o trabalho mais bem escrito de Montes até então, com controle de ritmo e de linguagem mais afiados.
O cinema percebeu esse apelo. Os direitos de adaptação dos dois primeiros romances foram vendidos. A razão é direta: as premissas são fortes, a construção é visual, e a moral dos personagens escorrega em terreno que o audiovisual adora explorar. Em histórias assim, a câmera não precisa correr; basta observar. O incômodo vem do gesto mínimo, do olhar que demora um segundo a mais, da palavra que não chega. É o tipo de suspense que cresce no detalhe.
Há uma costura que liga a fase inicial da carreira ao presente. Na antologia de 2009, O Professor já ensaiava um narrador que observa sem se abalar. Em Suicidas, o jogo narrativo brinca com relatos e perspectivas para desmontar a noção de verdade. Em Dias Perfeitos, a voz narrativa abraça a lógica do agressor e nos tranca no olhar dele. Em O Vilarejo, o pavor nasce da repetição ritual de um mal antigo. Em Jantar Secreto, a barbárie aparece, fria, como projeto de sociedade. O que muda é o cenário; o pulso é o mesmo.
Também ajuda a entender o lugar de Montes no mapa do gênero a tensão entre técnica e choque. O autor não tem medo de usar procedimentos clássicos do suspense — foreshadowing, cliffhangers, viradas no terço final —, mas escolhe temas que empurram limites. Psicopatia, cárcere, tabu alimentar. É um território espinhoso. Quando funciona, o leitor atravessa a vergonha de seguir adiante e a curiosidade de entender até onde aquilo vai. Quando falha, sobra a sensação de gratuidade. O equilíbrio, em geral, vem do desenho dos personagens.
No caso de Dias Perfeitos, Téo não é cartunesco. Ele é funcional. Não pede empatia; exige atenção. O mundo ao redor dele — a mãe, a faculdade, a rotina de dissecação, a vizinhança — cria um pano de fundo de normalidade. Essa normalidade é, por contraste, o que dá peso às decisões extremas. Clarice, por sua vez, escapa de ser só “a vítima”: tem projeto, ambição, desejos próprios. Quando a narrativa a coloca no cárcere, não marca um X no papel; devolve agência a ela sempre que possível, mesmo em cenário de dominação. Esse jogo de forças sustenta a leitura até o fim.
O fenômeno internacional seguiu uma rota típica de thrillers que cruzam idiomas. Primeiro, a venda de direitos para mercados estratégicos como Estados Unidos e Reino Unido. Depois, o empurrão de resenhas em jornais de grande circulação, que aumentam a visibilidade em livrarias e plataformas digitais. Em paralelo, feiras literárias e clubes de leitura adotam o livro como aposta. O efeito final não é só número: é catálogo vivo no exterior e nome que volta a circular quando surge adaptação.
Na prática, isso alimenta um ciclo virtuoso. Série nova puxa venda do livro antigo. Venda do livro antigo sinaliza para editoras estrangeiras que o autor permanece relevante. Editoras estrangeiras abrem espaço para próximos títulos. Próximos títulos chegam com mais fôlego, e o autor, por sua vez, ganha tempo e orçamento para projetos mais ambiciosos. É a roda girando — e, no caso de Raphael Montes, ela está girando rápido.
Há também a discussão de contexto local. O Brasil sempre consumiu crime e suspense, da TV aos livros. Mas nem sempre essa produção atravessa fronteiras. Quando um autor brasileiro rompe a bolha com um thriller psicológico — um subgênero que depende muito de voz, ritmo e inventividade —, algo chama atenção lá fora. No caso de Dias Perfeitos, o “gancho” é imediato: um amor que vira sequestro, contado do ponto de vista do sequestrador. Com essa premissa, a conversa com leitores de diferentes países fica mais fácil. A violência é íntima, não depende de códigos locais. A obsessão é universal.
Outro ponto que sustenta a carreira é a relação com os leitores. O público acompanha lançamentos, debate cenas, constrói teorias, volta aos livros anteriores em busca de detalhes que antecipavam viradas. Em clubes de leitura, Dias Perfeitos quase sempre rende discussões sobre consentimento, romantização da obsessão e o limite entre fascínio e repulsa. É um tipo de leitura que não termina no ponto final.
Se a trajetória começou com um conto na escola e um concurso de editora, hoje ela se sustenta em várias frentes: literatura, audiovisual, presença em eventos, circulação internacional. O conjunto forma um retrato nítido. Um autor brasileiro, jovem, de formação jurídica, encontrando no crime e no horror psicológico um canal de expressão e diálogo com públicos diversos — e colhendo o retorno disso em traduções, vendas e adaptações.
Para quem procura por onde começar, a rota óbvia ainda é a melhor: Dias Perfeitos pela força da premissa e do ritmo; Suicidas para entender a origem do projeto estético; O Vilarejo como laboratório de horror e atmosfera; Jantar Secreto para encarar o livro mais polêmico e tecnicamente mais lapidado. A ordem pode mudar, mas a assinatura aparece em todos.
Enquanto isso, a série na Globoplay amplia o alcance de Clarice e Téo. A televisão, diferente do cinema, permite mais tempo com os personagens e, portanto, mais nuances. A direção pode respirar, adaptar trechos de monólogo interno para cenas, e alongar o jogo de gato e rato sem perder tensão. Para quem leu, é chance de revisitar. Para quem chega agora, é porta de entrada. Em ambos os casos, o efeito colateral é previsível: as vendas sobem, os debates esquentam e a figura do autor ganha novo capítulo.
Raphael Montes não inventou o thriller psicológico no Brasil. Mas deu a ele uma cara pop e exportável, sem diluir a crueldade das escolhas narrativas. A história de um pedido materno transformado em pesadelo romântico explica uma parte. O resto vem de trabalho de base — anos de leitura, prática em antologias, laboratório em romances, atenção a ritmo, atenção a personagem. É isso que sustenta uma carreira que, aos 34 anos, cruza livrarias, telas e idiomas com a segurança de quem sabe onde quer chegar.

Dias Perfeitos: da página à tela
O coração da obra que o projetou mora em três eixos. Primeiro, a construção do protagonista: Téo é o tipo de personagem que enxerga o mundo como problema lógico. Em sua cabeça, Clarice é a variável que precisa ser controlada para o “plano de vida” funcionar. Segundo, o desenho da vítima: Clarice não é só alvo; é força ativa, com desejos e estratégia, e isso muda a dinâmica do conflito. Terceiro, o espaço: a sala de anatomia, a casa com a mãe, o cativeiro. Esses ambientes organizam a tensão como um tabuleiro.
Ao adaptar a trama, a série acerta quando traduz processo mental em gesto. É no tempo que a câmera demora num rosto, no ruído do elevador, no clique de uma chave, que a violência se anuncia. Julia Dalavia move Clarice entre fragilidade e astúcia sem caricatura. Jaffar Bambirra encontra o ponto exato entre afeto performático e ameaça. Eles sustentam a linha tênue que o livro explora: a propaganda romântica que encobre abuso.
A recepção internacional ao romance ajuda a explicar por que a história pede imagens. The Guardian destacou a precisão do relógio dramático; o Chicago Tribune, a frieza que guia o horror sem cair na autoparódia. Essas leituras, quando circulam fora, ampliam a curiosidade sobre adaptações. A venda de direitos para cinema e TV, no caso, vem menos de uma moda e mais de um encaixe natural entre forma e conteúdo.
Enquanto a série circula no streaming, o catálogo do autor respira junto. O Vilarejo encontra novos leitores que chegam pelo horror encadeado em contos. Jantar Secreto reencontra seu público em tempos de discussões sobre ética, consumo e espetacularização da violência. Suicidas volta à conversa como peça de origem — o embrião de uma assinatura que aposta alto em premissas incômodas e execução profissional.
Para a indústria, há um recado prático: thrillers brasileiros com premissas fortes, execução limpa e personagens tridimensionais têm público aqui e lá fora. A equação é conhecida, mas difícil de acertar. Raphael Montes provou que dá. A partir daí, cada novo lançamento e cada nova adaptação deixam menos dúvidas sobre a solidez de um projeto que começou, lá atrás, com um conto publicado aos 18 anos e um concurso vencido quase ao mesmo tempo em que o autor se dividia entre a faculdade de Direito e a escrita.
No fim, a pergunta “quem é Raphael Montes, autor de Dias Perfeitos?” tem uma resposta direta e outra em camadas. A direta: um escritor carioca de 34 anos, formado em Direito, que largou a advocacia depois de um best-seller, foi traduzido em 22 idiomas, vendido em 14 países, elogiado por jornais internacionais e adaptado para o audiovisual. A em camadas: um narrador de obsessões e limites, que usa a precisão do suspense para desmontar confortos e expor fissuras. É por isso que os livros não saem das listas, e é por isso que a TV correu para contar a mesma história em outra linguagem.